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*DE BOLSOS VAZIOS
Você conhece algum palhaço bonito?
Não. A não ser detrás da máscara.
Pois lhe afirmo que o palhaço Pingo é lindo! Vamos ao circo provar minha tese.
Tese?
Sim. É tão grande minha admiração pelo palhaço que aprofundei minhas pesquisas sobre o olhar, com citações e tudo.
Primeira citação: é na profundeza de um olhar triste, que vemos o enigma do sofrimento. O olhar é o retrato da alma. Mesmo na explosão do sorriso, a tristeza permanece.
Segunda tese: em cada olhar triste, há um imenso amor não correspondido, amor platônico. Lá no abismo do pensamento, cria raízes, com frustração quase insuperável.
Terceira tese: Na perda de alguém muito amado, a dor aloja-se no coração que transfere para o olhar. Ambos são amigos inseparáveis.
A amiga gargalhou.
Que sonhadora! O amor é frágil e cego.
Você é que não conhece o poder e profundidade de outro olhar.
Está apaixonada, amiga Melina!
O coração não escolhe. Instala-se na mente e pronto.
A amiga chegou ao circo, observou o Pingo, igual a todos os palhaços: careca, boca enorme, olhar de tristeza profunda, estatura mediana.
O espetáculo acabava, e Pingo sumia. As amigas nunca conseguiam uma pequena prosa sequer com o jovem palhaço. Um bilhete é a solução. Preciso conversar com você, querido palhaço, com urgência. Entregou para outro membro do Circo, e nenhuma resposta obteve. O circo desapareceu na calada da noite. Alguns meses se passaram e a insatisfação de Melita causava anseio e curiosidade.
Saíram do colégio, chovia. Um vulto se aproximou, ofereceu carona.
Não, obrigada. Não o conhecemos.
Conhece sim, é só dá uma chance.
Eu o conheço então? Nome, endereço, identidade, riram.
Entre e confie, quero muito conhecê-la melhor. As duas amigas piscaram os olhos e seja o que destino nos aprontar. As nuvens choravam sem piedade, não havia outro recurso para chegarem a casa.
O moço, de boné, estacionou em restaurante de luxo.
Vocês podem pedir algo quente para mim?
Não, estamos de bolsos vazios e não costumamos alimentar desconhecidos.
Só os conhecidos, então.
Nem um, nem outro.
O moço pediu o melhor vinho, jantar, sobremesa da melhor qualidade.
Como vai arcar com as despesas? Não temos como dividir.
Silêncio foi à resposta. Ao retirar os óculos escuros, o olhar de tristeza fitou o olhar indagador de Melina.
Pingo é você? Que lindo você é! Por trás do boné, uma vasta cabeleira cor de ouro, rosto e boca encantadores.
Por que nunca respondeu meus bilhetes? Porque fugia com tanta constância? Por que tanta tristeza em seu olhar?
Nunca consegui encontrar um amor verdadeiro, por ter os bolsos vazios.
Quer casar comigo de bolsos vazios? Mas... É... Não sei...
Por que tenho os bolsos vazios?
Não.
Posso conhecer seus pais agora!
É que a mãe falou para eu não andar com pessoas desconhecidas
Já disse: vou conhecê-la agora.
Ela não está mais comigo.
Abandonou-a?
Não. Foi um abandono involuntário, num acidente de carro. Agora eu sou mãe.
Ah, é casada? Não sabia!
Não.
É mãe solteira.
Não, sou mãe do meu irmão menor.
Quer casar comigo?
Sim, quer dizer, não, sem pensar, de supetão, SIM.. Chegaram à casa da Melina solitária. Perdera os pais, há pouco tempo.
Você sobrevive de quê?
Aposentadoria do meu pai, até completar os vinte e dois anos, ou concluir uma faculdade. Ele era militar.
Pingo deu uma varrida na casa, ou melhor, na sala. Um adolescente no computador, o televisor aberto, o jarro no centro da mesa, com flores desbotadas, inúmeras fotos decoravam a parede e, dentre elas, os pais de Melina. Solidão e saudade cobriam o semblante de Melina que refletia no ambiente. Sentia tudo desbotado, precisando de aguador. Um anel de brilhante ornou o dedo delicado.
Então você é pessoa de recursos? Disfarçado de pobre? Um sorriso de felicidade foi a resposta do palhaço pingo.
Do livro: "Por Justa Causa" - contos
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Sonia Nogueira
Enviado por Sonia Nogueira em 07/02/2021
Alterado em 07/02/2021
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