*PARA SER UM AUTOR INTEIRO
Publicado no Caderno G (Gazeta do Povo), em 06 de novembro de 2011.
Texto de Miguel Sanches Neto
Ray Bradbury
O que se ama e o que se odeia é que escrevem a literatura, defende Ray Bradbury, numa coletânea de ensaios e de poemas que talvez seja um dos mais fascinantes livros sobre a atividade literária: O Zen e a Arte da Escrita (Leya, 2011). Não se iluda o leitor, no entanto. Não se trata de uma obra de aplicação de filosofia oriental ao processo criativo, mas um conjunto de depoimentos apaixonados.
O primeiro pré-requisito para quem quer escrever, neste receituário radical, é o entusiasmo, o estado febril, a elevação da temperatura da linguagem. Quem não for capaz de sentir um prazer incontornável na hora da escrita estará fadado a não se constituir artisticamente: “Se você está escrevendo sem entusiasmo, sem prazer, sem amor, sem alegria, você é apenas meio autor” (p.22). A escrita “deve atingir a página como um raio” (p.23). E aí se chega a um elemento essencial para um texto se realizar plenamente no leitor: a velocidade.
E velocidade nada tem a ver com brevidade. Há textos breves e, mesmo assim, de leitura insuportável. A rapidez na hora da escrita é fator fundante de uma literatura que diz o que tem que ser dito, que não cria anteparos que a desvirtuem: “Quanto mais rápido você se expressar, quanto mais prontamente escrever, mais honesto será” (p. 31). A lentidão propicia um esforço de estilo, uma construção de linguagem que cerceia as pulsões mais profundas de um eu que deve funcionar como um silo de experiências humanas.
Para se tornar um repositório de memórias e de imaginação, Ray Bradbury entende que o escritor deve cultivar uma fome total pelo mundo, pelas pessoas, pelos ambientes frequentados tanto em vida quanto em sonho. Este acúmulo de ser funciona para ele como a Musa, uma entidade voraz que desencadeia informações reativas, dando origem a histórias. Para se cultivar este estado de absorção simbólica do mundo, é fundamental a intimidade com a poesia. Da minha parte, sempre desconfiei do ficcionista que não lê poesia, pois um poema é uma cápsula de vida, um concentrado que nos dá uma energia de linguagem impossível de ser encontrada em outro suporte. A poesia nos ensina a sermos nós mesmos, a percorrermos as regiões escuras de nossos sonhos e pesadelos, território de nossas raízes.
Assim, o mundo externo só atinge a sua potencialidade artística quando recolhido ao inconsciente, onde os detritos mais diversos se fazem adubo. É lá, no que Bradury nomeia como self intuitivo, ou mente secreta, que se encontra a terra fértil da escrita. Dessa viagem ao centro de si mesmo é que trazemos as narrativas que não poderiam ser produzidas por nenhuma outra pessoa. É lá que se encontra a voz individual, nascida das leituras perturbadoras e de tudo o mais que atingiu a pessoa, ferindo-a.
Neste perfil de um autor que não controla o que escreve, que libera as comportas de uma usina interior, a escrita não é uma construção, e sim uma água incontrolável que chega como transbordamento: “Aprendi a deixar os meus sentidos e o meu Passado me contarem tudo o que era, de algum modo, verdadeiro” (p.100). O que compromete a arte é a submissão a uma autoconsciência, que nos afasta deste terreno da verdade de cada um. É preciso se inundar do mundo, vivendo tudo numa grande vertigem, e depois deixar que a escrita se faça a vazante das tensões acumuladas.
Por isso, as três grandes atitudes literárias, na visão de Bradbury, são: “trabalho, relaxamento e não pense!” – escrever todos os dias por décadas, para adquirir uma naturalidade neste ato, para que ele não seja uma exceção na rotina da pessoa; derrubar o controle das intenções de um texto; e não refletir sobre a história antes, deixando que ela se imponha.
Como se pode ver, para ser um autor inteiro há que jogar a vida na escrita.
Serviço:
O Zen e a Arte da Escrita, de Ray Bradbury. Tradução de Adriana de Oliveira,168 págs.
Ray Bradbury
Enviado por Sonia Nogueira em 23/01/2012
Alterado em 23/01/2012